História verídica
Um senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.
Agora esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amigável, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução. Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.
Julio Cortázar - "Histórias de cronópios e de famas"
Queja
Señor, mi queja es ésta,
tú me comprenderás:
De amor me estoy muriendo,
pero no puedo amar.
Persigo lo perfecto
en mí y en los demás,
persigo lo perfecto
para poder amar.
Me consumo en mi fuego,
¡señor, piedad, piedad!
De amor me estoy muriendo,
¡pero no puedo amar!
Alfonsina Storni (Argentina, 1892/1938)
Instruções para dar corda no relógio
Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pode ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte, se não corremos e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.
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Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo
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Sabe-se de um caixeiro-viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo, justo debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida mostrava os sinais de uns dentes muito finos.
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Julio Cortázar - "História de cronópios e famas"