Ato 1
DIVINA COMÉDIA
Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam:—"Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,
Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N'um turbilhão cruel e delirante…
Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?
Porque é que para a dor nos evocastes?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem:—"Homens! porque é que nos criastes?"
Este soneto do poeta português Antero de Quental (1842-1891) nos coloca diante da eterna questão humana: afinal, o mundo existe apesar de nós ou somos nós que o criamos? E se somos criadores, porque criamos os deuses?
Ato 2
O DESCONHECIDO
Tudo é ilusão.
A ilusão do pensamento, a do sentimento, a da vontade. Tudo é criação, e toda a criação é ilusão.
Criar é mentir.
Para pensar o não‑ser criamo‑lo, passa a ser uma coisa. Todos os que pensam ocultistamente criam em absoluto todo um sistema do Universo, que fica sendo real. Ainda que se contradigam: há vários sistemas do universo, todos eles reais.
Nós próprios, porque existimos, somos criações também, portanto ilusões. Mas somos criações de quem? Do Deus que nós próprios criamos? Como se o criamos nós, e lhe somos portanto anteriores? Isso é supondo real o tempo, que é outra criação nossa. Tudo é um amontoado de ilusões.
Aquilo a que chamamos verdade é aquilo a que também chamamos o ser. Verdadeiro é o que é. Mas o que é é ilusão. Por isso a verdade é a ilusão, é uma ilusão.
A que abismo vamos ter?
Quanto mais forte o pensamento, o sentimento, a vontade, maior o poder criador.
O que a ocultistas é verificável é falso. Há imortalidade, mesmo eternidade da alma, mas isto é falso. Há um Deus eterno, criador do céu e da terra, e isto é falso. Ser é não‑ser.
Nunca podemos deixar de criar, por isso nunca podemos deixar de mentir.
A própria ilusão é uma ilusão.
[...]
Não haverá graus na ilusão? Quanto mais criadora uma coisa é mais ilusória. Partindo do nosso espírito, vemos quais as maiores ilusões ...
Tudo se reduz a criar.
Tudo se reduz a iludir-se.
Portanto criar é mentir.
Esse texto filosófico de Fernando Pessoa, outro poeta português, nos transforma em seres criadores e, por isso mesmo, mentirosos. Criamos, mas tudo que criamos não passa de ilusão.
Ato 3
"Para Epicuro, os deuses são realmente o que há de melhor e mais excelente, de modo que podem ser os êmulos de nossas ações. Mas este ideal divino de vida feliz se projeta sobre o homem mais nobre não como um exercício arbitrário de desejo, poder e vontade despótica, mas como a máxima serenidade, a mais imperturbável ataraxia. Os deuses, mais do que qualquer um, são imperturbáveis por nossos feitos, seja para agradá-los, seja para afrontá-los. (...) Não precisamos temer os deuses, nem nos pautar por servi-los. Os deuses absolutamente não precisam em nada de nós."
Outro Fernando, Santoro, em seu livro "Arqueologia dos Prazeres".
Final
Lemos em Diógenes que Epicuro teria criado o tetrafármaco - um conjunto de quatro preceitos criados por ele como uma receita para bem viver. O primeiro deles remete justamente à criação dos deuses. Os homens os teriam idealizados à sua semelhança, diferindo apenas no poder excedente e na imortalidade. Ao projetar seus valores e ideais em seres imortais, os homens acabaram por criar, paradoxalmente, algo que se tornou mais poderoso e forte. Um poder divino ao qual se submetem mas que, ao mesmo tempo, desejam que decida de acordo com a vontade humana.
Criamos deuses para nossa servidão voluntária, abrindo mão de nossa liberdade de ação. Criamos os deuses e desejamos agradá-los - como de resto a todos - e nunca fazemos o suficiente. Estamos eternamente em dívida - de impossível quitação. Sem crédito, aguardamos a sentença:
"O peso do olhar divino sobre as ações humanas faz com que se esteja o tempo todo preocupado em agradar ou não desagradar os deuses, enquanto não se examinam realmente a virtude e a excelência das próprias ações. Responsabilizamos os deuses pelo que nos vem de bom ou de ruim, como se estivessem muito preocupados em nos recompensar ou castigar.(...) Com tudo isso, abrimos mão de exercer nossa liberdade na responsabilidade das decisões e das ações." ("Arqueologia dos prazeres" de Fernando Santoro).
Não sabemos - e nunca saberemos - se foram os deuses que nos criaram ou fomos nós que os inventamos. Não importa. Se os criamos como modelos aos quais queremos imitar e obedecer, o primeiro passo para uma vida feliz, segundo Epicuro, seria justamente livrar-nos dessas projeções transcendentais e viver de forma livre e plena. Afinal, "os deuses não estão nem aí para nós."
DIVINA COMÉDIA
Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam:—"Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,
Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N'um turbilhão cruel e delirante…
Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?
Porque é que para a dor nos evocastes?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem:—"Homens! porque é que nos criastes?"
Este soneto do poeta português Antero de Quental (1842-1891) nos coloca diante da eterna questão humana: afinal, o mundo existe apesar de nós ou somos nós que o criamos? E se somos criadores, porque criamos os deuses?
Ato 2
O DESCONHECIDO
Tudo é ilusão.
A ilusão do pensamento, a do sentimento, a da vontade. Tudo é criação, e toda a criação é ilusão.
Criar é mentir.
Para pensar o não‑ser criamo‑lo, passa a ser uma coisa. Todos os que pensam ocultistamente criam em absoluto todo um sistema do Universo, que fica sendo real. Ainda que se contradigam: há vários sistemas do universo, todos eles reais.
Nós próprios, porque existimos, somos criações também, portanto ilusões. Mas somos criações de quem? Do Deus que nós próprios criamos? Como se o criamos nós, e lhe somos portanto anteriores? Isso é supondo real o tempo, que é outra criação nossa. Tudo é um amontoado de ilusões.
Aquilo a que chamamos verdade é aquilo a que também chamamos o ser. Verdadeiro é o que é. Mas o que é é ilusão. Por isso a verdade é a ilusão, é uma ilusão.
A que abismo vamos ter?
Quanto mais forte o pensamento, o sentimento, a vontade, maior o poder criador.
O que a ocultistas é verificável é falso. Há imortalidade, mesmo eternidade da alma, mas isto é falso. Há um Deus eterno, criador do céu e da terra, e isto é falso. Ser é não‑ser.
Nunca podemos deixar de criar, por isso nunca podemos deixar de mentir.
A própria ilusão é uma ilusão.
[...]
Não haverá graus na ilusão? Quanto mais criadora uma coisa é mais ilusória. Partindo do nosso espírito, vemos quais as maiores ilusões ...
Tudo se reduz a criar.
Tudo se reduz a iludir-se.
Portanto criar é mentir.
Esse texto filosófico de Fernando Pessoa, outro poeta português, nos transforma em seres criadores e, por isso mesmo, mentirosos. Criamos, mas tudo que criamos não passa de ilusão.
Ato 3
"Para Epicuro, os deuses são realmente o que há de melhor e mais excelente, de modo que podem ser os êmulos de nossas ações. Mas este ideal divino de vida feliz se projeta sobre o homem mais nobre não como um exercício arbitrário de desejo, poder e vontade despótica, mas como a máxima serenidade, a mais imperturbável ataraxia. Os deuses, mais do que qualquer um, são imperturbáveis por nossos feitos, seja para agradá-los, seja para afrontá-los. (...) Não precisamos temer os deuses, nem nos pautar por servi-los. Os deuses absolutamente não precisam em nada de nós."
Outro Fernando, Santoro, em seu livro "Arqueologia dos Prazeres".
Final
Lemos em Diógenes que Epicuro teria criado o tetrafármaco - um conjunto de quatro preceitos criados por ele como uma receita para bem viver. O primeiro deles remete justamente à criação dos deuses. Os homens os teriam idealizados à sua semelhança, diferindo apenas no poder excedente e na imortalidade. Ao projetar seus valores e ideais em seres imortais, os homens acabaram por criar, paradoxalmente, algo que se tornou mais poderoso e forte. Um poder divino ao qual se submetem mas que, ao mesmo tempo, desejam que decida de acordo com a vontade humana.
Criamos deuses para nossa servidão voluntária, abrindo mão de nossa liberdade de ação. Criamos os deuses e desejamos agradá-los - como de resto a todos - e nunca fazemos o suficiente. Estamos eternamente em dívida - de impossível quitação. Sem crédito, aguardamos a sentença:
"O peso do olhar divino sobre as ações humanas faz com que se esteja o tempo todo preocupado em agradar ou não desagradar os deuses, enquanto não se examinam realmente a virtude e a excelência das próprias ações. Responsabilizamos os deuses pelo que nos vem de bom ou de ruim, como se estivessem muito preocupados em nos recompensar ou castigar.(...) Com tudo isso, abrimos mão de exercer nossa liberdade na responsabilidade das decisões e das ações." ("Arqueologia dos prazeres" de Fernando Santoro).
Não sabemos - e nunca saberemos - se foram os deuses que nos criaram ou fomos nós que os inventamos. Não importa. Se os criamos como modelos aos quais queremos imitar e obedecer, o primeiro passo para uma vida feliz, segundo Epicuro, seria justamente livrar-nos dessas projeções transcendentais e viver de forma livre e plena. Afinal, "os deuses não estão nem aí para nós."
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