ESPANTA-ESPÍRITOS
Amanhã tudo será pior
ainda, eu sei: o hábito, a inércia,
o sem remédio da vida - tão pouco
haverá a salvar.
Por toda a cidade os desconhecidos
subirão outro degrau para o escuro
da noite, e a memória será talvez
um remorso:
aquela manhã de sol
na varanda, o espanta-espíritos
com peixes de alumínio num rosário
de contas profanas.
Ainda o tens? Ainda canta,
de madrugada, se o vento sopra
do mar?
Não importa. Foi sempre de menos
o muito que pedimos
e a parte que tivemos.
Rui Pires Cabral (Portugal - 1967)
É FAVOR FECHAR A PORTA
Descer a rua numa noite de Agosto
e por momentos nada ouvir senão
uma voz na cabeça que faz e repete
o poema mais desnecessário;
ver por toda a parte os sinais
perdidos e as cicatrizes dum fortuito
trânsito: alguém insiste em abrir
ao perigo a porta do número 133,
enquanto os rapazes do café vizinho
fumam sob o toldo à hora do fecho
e invadem o verso com uma frase
avulsa: coitado, morreu-lhe a filha;
tomar à esquina o táxi onde espera
um homem sem rosto, seguir
essa estrada - para um recomeço
ou uma despedida? - e entender
de súbito que tudo é por acaso,
não ter a ilusão doutra certeza.
Rui Pires Cabral (Portugal - 1967)
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