Morada
A nossa vez
É o frio que nos tolhe ao domingo no Inverno, quando mais rareia a esperança. São certas fixações da consciência, coisas que andam pela casa à procura de um lugar
e entram clandestinas no poema. São os envelopes da companhia da água, a faca suja de manteiga na toalha, esse trilho que deixamos atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera
e a demora. São as ruas sossegadas à hora do telejornal e os talheres da vizinhança a retinir. É a deriva nocturna da memória: é o medo de termos perdido sem querer
a nossa vez.
Nós vivemos na cidade quase sempre perdidos
nas nossas pequenas razões. Estas ruas
ainda prometem mais do que podem cumprir?
A breve epifania do amor ou simplesmente
um cúmplice que nos diga, à mesa de um café,
que não faz mal, que pouco importam
as perdas e danos que sofremos.
De qualquer modo o mundo continua.
Entre o medo e a esperança
procuramos a nossa incerta morada
e enquanto isso envelhecemos mais um dia,
colhidos pelo tempo em plena queda. Nas praças,
nos quintais, a noite aparece depois do jantar
cheia de boas promessas, mas já vem condenada
ao tropel dos crentes, ao cego movimento da manhã.
Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Lisboa: Averno, 2005
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