Bilhete a Heráclito
Tudo deu certo, meu velho Heráclito,
porque eu sempre consigo atravessar esse teu outro rio
com o meu eu eternamente outro....
* * *
Nunca dês um nome a um rio:
sempre é outro rio a passar.
Mário Quintana (1906-1994)
"E nada me permite afirmar que eu sou, eu o
ego, o mesmo através do tempo. Nada me permite, pois perdi o tempo, perdi a memória e já esqueci quem sou. Nem mesmo posso dizer: "eu sou", mas apenas: "há algo", "algo acontece, é vivido, é a vida".
Mikkel Borch-Jacobsen
Sou Apiaká-kayabi, Sateré-Mawé, Waiana Apalai, Guarani-Kaiowá, Yalawapiti.....
Tríptico com melopeia
Sob a pele
lento e surdo
um lume.
Pelas ruas
somente a palha
o velho cascalho
das palavras.
Onde os claros, longos dias do Verão?
Onde uns olhos amorosos, a chamar?
Tortos mortos rios
as planícies devastadas.
Pedra e cal
e a mó moendo infatigavelmente.
Distante, muito além
um obstinado fagote
recorrente e rouco.
Henrique Chaudon
Não resisti e embarquei, quando li esse belo poema do Henrique Chaudon, nos sons da memória. Um fagote. A primeira lembrança, certamente também para muitos, é a peça musicada de Prokofiev "Pedro e o Lobo". O som grave do fagote anunciava as advertências do avô contra o heróico desejo de Pedro: caçar o lobo.
A outra grata lembrança foi quando conheci Noel Devos em uma apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira. Noel nasceu na França, mas veio para o Brasil na década de 50 como primeiro fagotista da OSB. Ainda tenho um LP dele, comprado na ocasião, intitulado: "Francisco Mignone - 16 valsas para fagote solo". Um solo de Noel Devos. E constatamos: um fagote recorrente e rouco. Ah... mas também tão doce...
O contrabaixista Ron Carter dizia que sua função num quinteto de jazz (ele foi o contrabaixista do quinteto de Miles Davis) era tocar sempre a nota que impedisse os outros músicos do grupo de tocar a nota que eles imaginavam que iam tocar, obrigando-os sempre a encontrar uma nota inesperada. Penso sempre nessa frase, obsessivamente, e acho que é porque, no fundo, a vida, tal como a vivo, é o meu Ron Carter, sempre fazendo soar a nota que me impede de tocar a nota que eu achava que ia tocar, e me obrigando a encontrar outra, à queima-roupa, numa fração de zepto-segundo. Às vezes desafino feio, falho, perco o tom e o rebolado, e os amigos me vão recolher no lixo do beco atrás do enfumaçado e noturno "Pub dos Corações Solitários", entre trapos de lágrimas, gatos e espinhas de peixe, e outras vezes mando tão bem que o pequeno público do enfumaçado e noturno "Pub dos Corações Solitários" se levanta, dança na pista e entre as mesas, esboça um sorriso entre as lanterninhas japonesas dos cigarros e os copos de gim e ao final aplaude e grita, olhos brilhando: "mais um!". E eu toco um novo solo feito das lembranças de ter sido recolhido no lixo, entre trapos de lágrimas, gatos e espinhas de peixe. Disse o Paul Valéry que um leão é feito de carneiros devorados, eu sou um carneiro feito de leões ferozes ludibriados, e amo cada palavra escrita pelo poeta peruano Antonio Cisneros, morto semana passada, aos 69 anos. Que dor no coração escrever estas palavras."
Carlito Azevedo (O Globo, Prosa e Verso, 27/10/2012)
Café en Martirok Utja
Hay una lámpara floreada sobre el piano
y una estufa de fierro.
Bebes el vino junto a la única ventana:
un autobús azul y plata cada cinco minutos.
Pides el cenicero a la muchacha
(alta flor de los campos ven a mí).
La luz del otoño es en tu vaso
un reino de pájaros dorados.
Pero pronto anochece.
Los autobuses no son azul y plata,
el cenicero es una rata muerta,
el vaso está vacío.
La muchacha partió cuando encendieron
la lámpara floreada y tú mirabas
la lámpara floreada.
Puedes pedir otra jarra de vino,
pero esta noche
no esperes a los dioses en tu mesa.
Antonio Cisneros (1942-2012)