"Narcisso Speculando" - Madrigais, Paolo da Firenze (1355 - 1436)
3.
Diante de mim, nestas águas
quem sou, que não me preciso?
Ai, que sonho tão temível
assim me turva o sorriso?
Que amor, que presságio cingem
a cabeça de Narciso?
A que secretos poderes
se confia minha sorte,
se o que frágil vejo na água,
em mim se torna mais forte,
e onde sei que está a vida
encontram todos a morte?
Entre mistérios tão vastos
que breve instante que somos!
De repente descobrimos
que estamos. Mas onde? e como?
Por mais que nós nos dobremos
sobre nós e o que já fomos,
à inútil pergunta nossa
somente o eco responde.
E diante outra vez de nós
estamos. Há quem nos sonde?
E de que espaço ou que tempo
nosso eco responde? de onde?
* * *
5.
Minha face prateada pela tarde
nativa de zagais e alegorias
é um reflexo de mim tornado arte,
do centro imóvel que gerou meu dia.
A mão é um rio de coral filtrado
entre conchas de som que o sonho fia,
e são as veias um caminho vasto
para um sangue de amor e de agonia.
Em torno a mim os mármores do tempo
tecem tramas de eterno meio-dia,
e me dissolvem no seu pensamento.
Há cavalos de amor de crinas frias
arrastando-me sempre para dentro:
que eu mesmo sou a minha companhia.
* * *
19.
Consomem-se os laureis da minha vida
em quatro dias, quatro eternidades
memoráveis de esperas e de lutas
contra mim mesmo e o tempo que me cabe
com seu noturno archote e muda flama,
e este silêncio, que é de amor ainda,
rastejando seus males e o infortúnio
contra um redor de festas e vindimas.
Um céu pressago sobre mim desaba
seu manto esquivo e azul com mãos tão frias
que o coração e tudo em mim naufraga
avaramente, e logo se aniquila,
como a sombra que em sombra se desata.
E estou tão só que a solidão cintila.
Extraídos do livro "Explicação de Narciso" de Marly de Oliveira (1935-2007)
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