Semi-desperto. Ouço um ronronar, dois, três. Silêncio.
Penso: era um ruído decorrente de um pulmão “en-cigarrado” ou um resto de
respiro de quem dorme? Que dia é hoje? Quarta? Quinta? Sim, é quinta. Sem
compromissos. Ligo a TV e viro para o outro lado. Ouço as vozes e me desligo,
num movimento de ida e volta no dia. Que começa sem mim. Até que o furão, a
onça parda atropelada, a raposa ferida, a jibóia dormitada dentro de um cano e
as jararaquinhas dormideiras que comem
escorpiões no cerrado me despertaram inteiramente.
Mesmo assim, um café não bastou. Voltei pra cama e pensei em
tudo que já teria feito nessas duas horas de uma manhã de quinta.
Se o dia vai terminar, porque começá-lo? Risinho de lado, pra dentro. Ora, o dia começa,
sempre. Ele é que me começa.
Uma sonda chinesa toca o lado, até agora, oculto da Lua.
Lado oculto para nós. E em nós, certamente. Cultivo de flores e verduras em
solo lunar. Prefiro as verduras.
Segundo café. Sem açúcar e com a lembrança daquele croissant,
naquela manhã, daquele dia, naquela estação. Me lembrava, talvez por conta do croissant, do trecho
inicial de Combray. A noite, os dias, o movimento lunar: tem seus começos e
seus fins e seus recomeços. Me lembrava,
talvez por conta de Combray, que Proust iniciava suas manhãs lendo os jornais.
Sim. Dizia ele que nas notícias curtas dos jornais podemos ler toda a tragédia
e comédia da vida humana. Depois de um tempo comecei a achar também que as
notícias formavam um mosaico e que talvez houvesse um sentido, uma ligação
imperceptível entre elas, que nos trariam respostas sobre nossa humanidade.
O dia começa com as notícias. Também começo a montar meu
mosaico. “Dark side of the moon”.
Enquanto ouço, me desligo. Nomes conhecidos; e minha atenção
retorna: Renato Russo, pausa, Raul Seixas, pausa, Marcel Proust (“Nossos
sentimentos vão se atrofiando por medo de sofrer”), Fernando Pessoa, Clarice
Lispector. Quem é? Ah. Novo Embaixador. Relações
Exteriores. Para que tantas citações afinal? Ah. Ele é um erudito. E talvez
necessite mostrar que essa qualidade o define. Lembro de uma professora “explicadora”-
eu tinha dificuldades em interpretação de textos - que um dia solicitou à minha mãe permissão
para levar-me ao cinema (após as explicações do dia), certamente como um pretexto para sair de casa e
encontrar alguém (agora eu sei). Além da blusa grande demais, resolveu que poderia colocar em mim o mesmo
batom que usava. Parou um instante, olhou distraidamente o meu rosto, meneou a
cabeça para o lado direito em sinal, assim me pareceu, de desaprovação. E
disse: “Quem é bonita, já é bonita. Não precisa mostrar.” Riu e falou
rapidamente: “Quem quer mostrar que é algo é porque não é. Entendeu?” Se minha
dificuldade de interpretação com textos escritos era o motivo de estar ali,
percebi que talvez fosse por conta da cobrança escolar, pois havia entendido
perfeitamente o texto dela.
Desligo. Eu e a TV.
"Amanhã recomeço".
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