Joãozinho se recusa a colocar o tênis. É dezembro. Num shopping, domingo à tarde. Seu pai argumenta: veja, todos estão usando tênis. Joãozinho, com dois anos, ainda não contraargumenta, apenas insiste. Sinto já ter ouvido o contraargumento. Sim, do pai do Joãozinho que, com alguns anos mais de vida, me disse: por que tenho que fazer o que todos fazem? Sinto em mim também a menina que tinha dois sapatos: um conga preto, com o qual caminhava muitas quadras até o colégio estadual, e um sapatinho preto de verniz, com um pequeno saltinho, que era usado exclusivamente na missa dominical. Diferente do colégio, onde todos usavam o mesmo conga, na igreja havia meninas que usavam outros sapatos e eles mudavam a cada domingo! Era sempre uma surpresa. Um dia, motivada pela emoção diante de um sapatinho cor de rosa com um lacinho de enfeite, perguntei à minha mãe: porque não tenho o que os outros têm?
Joãozinho não cedeu: domingo no shopping sem tênis. O pai do Joãozinho, compreensivo, aceitou enquanto pensava que seria mesmo bom poder estar descalço naquele momento.
A menina do conga, que se tornou avó do Joãozinho, tinha um constante pesadelo: estar na rua descalça, querer correr e não conseguir e sentir muita vergonha. Muitas análises vieram, com várias hipóteses, levando em consideração minhas dificuldades e situações vividas - como se elas fossem causas da vergonha que sentia de mim mesma.
Pés descalços. Significava a condição dos escravos, da pobreza - uma posição econômica e social. Ter um par de sapatos era a primeira coisa a ser feita para se considerar um homem livre ("calçar a liberdade"), mas ainda assim continuava sendo um "pé rapado".
"Pés descalços" também significava humildade, despojamento.
Nos meus sonhos, o sentimento era de vergonha, sensação de nudez, timidez, falta de confiança. Mas na juventude, quando eu e uma amiga tiramos os sapatos no meio do centro da cidade para "salvar" nossos dedinhos, a sensação de bem estar e liberdade me acompanha desde então.
Apenas insista. Apesar de tudo e de todos.
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