Telma Miranda

 Joãozinho se recusa a colocar o tênis. É dezembro. Num shopping, domingo à tarde. Seu pai argumenta: veja, todos estão usando tênis. Joãozinho, com dois anos, ainda não contraargumenta, apenas insiste. Sinto já ter ouvido o contraargumento. Sim, do pai do Joãozinho que, com alguns anos mais de vida,  me disse: por que tenho que fazer o que todos fazem? Sinto em mim também a menina que tinha dois sapatos: um conga preto, com o qual caminhava muitas quadras até o colégio estadual, e um sapatinho preto de verniz, com um pequeno saltinho, que era usado exclusivamente na missa dominical. Diferente do colégio, onde todos usavam o mesmo conga, na igreja havia meninas que usavam outros sapatos e eles mudavam a cada domingo! Era sempre uma surpresa. Um dia, motivada pela emoção diante de um sapatinho cor de rosa com um lacinho de enfeite, perguntei à minha mãe: porque não tenho o que os outros têm? 

Joãozinho não cedeu: domingo no shopping sem tênis. O pai do Joãozinho, compreensivo, aceitou enquanto pensava que seria mesmo bom poder estar descalço naquele momento. 

A menina do conga, que se tornou avó do Joãozinho, tinha um constante pesadelo: estar na rua descalça, querer correr e não conseguir e sentir muita vergonha. Muitas análises vieram, com várias hipóteses, levando em consideração minhas dificuldades e situações vividas - como se elas fossem causas da vergonha que sentia de mim mesma. 

Pés descalços.  Significava a condição dos escravos, da pobreza - uma posição econômica e social. Ter um par de sapatos era a primeira coisa a ser feita para se considerar um homem livre ("calçar a liberdade"), mas ainda assim continuava sendo um "pé rapado".  

"Pés descalços" também significava humildade, despojamento. 

Nos meus sonhos, o sentimento era de vergonha, sensação de nudez, timidez, falta de confiança. Mas na juventude, quando eu e uma amiga tiramos os sapatos no meio do centro da cidade para "salvar" nossos dedinhos, a sensação de bem estar e liberdade me acompanha desde então.  

Apenas insista. Apesar de tudo e de todos. 



"A lei penal é como a serpente, só pica os descalços" 

https://professorlfg.jusbrasil.com.br/noticias/133203135/a-lei-penal-e-como-a-serpente-so-pica-os-descalcos
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Telma Miranda

 Ler Clarice é um mistério. 

É como se houvesse uma morte e renascimento ao mesmo tempo: morrendo e me parindo nas palavras escritas por Clarice. 

Um mistério até o dia em que sabemos que não há mistério algum. É muito simples. 

Simplesmente acontece. 

Estou em uma rua de pedestre, me desviando de pessoas e bolsas, ouvindo os "comerciais" dos camelôs. Páro diante de uma banca de jornal e olho distraída as revistas expostas.  Desvio o olhar por nenhum motivo e encontro aqueles olhos azuis. Sim. Azuis, mas muito tristes. Tão tristes que me entristeço rapidamente. Ele me olha, mas não me vê. É tudo muito rápido e em algum momento entre a tristeza do olhar e meu entristecer percebo que são olhos de um manequim colocado na porta da loja. Tudo muito rápido, mas eu vi. Como Clarice, o não-olhar do cego. E me vi nele: ele era eu. Aquela tristeza era minha. Sua paralisia, inocência, serenidade me davam outras dimensões de mim.E soube ali que amava.