Telma Miranda

Mad Woman, Delacroix, 1822



Madness


A tal lucidez incomunicável

Que nos deixa mais sós

Não na noite infinda

Mas na manhã

apenas iniciada...



Escrevi isso há algum tempo. Sobre um verso de Pessoa: " A lucidez incomunicável é a pior solidão". Loucura e lucidez unidas na angústia da incomunicabilidade. Muitas vezes me surpreendo palavreando na tentativa de dar conta do tamanho da manhã. Daí a ilusão de clareza e urgência tamanha do papel. Ou da tela, anyway.
E me desconcerto, enquanto o mundo se desconserta.
Mas, paradoxalmente, toda essa loucura (habitada e alheia) que nos aprisiona também nos liberta. Como se brotasse, da alma desassossegada, uma chave que não abre coisa alguma mas que existe em si mesma como possibilidade. Tudo isso pra dizer que reli Clarice e me incomuniquei nela. E acordei com ela um acordo de silêncio. ( A incomunicabilidade junto à Clarice set me free...)


PS: Como não há mais bosques, decidi que a partir de amanhã vou caminhar todos os dias até a praia de Itacoatiara para des-palavrear o mundo. Quem sabe amanhece uma manhã lúcida de sol...
Telma Miranda



Em dias de Clarice, mal consigo rabiscar letras, quanto mais escrever palavras.
Impossível. Só ler e restar. Que nem barata morta esquecida num canto...
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Telma Miranda


Para medir sua obra, Antônio Houaiss citou as "angústias afins" de Erasmo, Swift e Valéry; já Alfredo Bosi festejou: "Não é só o metro que agora se libera e espraia: a música toda se desata procurando seguir de perto as ondulações sutis dos estados de alma".

Ambos se referem a Jayro José Xavier, que é considerado por alguns um dos maiores poetas brasileiros vivos, ao lado de Manoel de Barros. Pois o autor acaba de lançar um livro feito por conta própria - mesmo. Recém-aposentado e sem editora, Xavier aproveitou seus conhecimentos de encadernação, uma prensa de madeira e papel reciclado de Itamonte, e tratou de confeccionar Poemas, onde reúne textos de 40 anos de carreira literária.

Uma pena que, no Brasil, uma obra tão preciosa fique relegada a uma tiragem de 250 exemplares (encomendados no e-mail jayroxavier@gmail.com). Ao mesmo tempo, é importante dizer: a edição caseira é um charme só. E, para dar um gostinho de seu conteúdo, segue o poema "O caracol":

"Mora entre as sombras eternas do fundo do pátio
e não canta. Antes inclina as antenas
e capta
a branda aspereza do dia

À noite sai,
tece uma seda líquida nos ladrilhos de cimento

Nem é um bicho, é
um silêncio
lentíssimo - mucosa e casa
movendo-se

Sábio molusco

No estio adverso encolhe-se feito feto
na valva em espiral. E adere
- úmido -
à dura pele da terra

(todo ele concha
e nostalgia
da unidade)"

Juliana Krapp
http://www.jblog.com.br/ideias.php?itemid=8208
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Telma Miranda

Butterflies - Van Gogh

Frühlingslied

Die Luft ist blau, das Tal ist grün,
Die kleinen Maienglocken blühn,
Und Schlüsselblumen drunter;
Der Wiesengrund
Ist schon so bunt
Und malt sich täglich bunter.

Drum komme, wem der Mai gefällt,
Und schaue froh die schöne Welt
Und Gottes Vatergüte,
Die solche Pracht
Hervorgebracht,
Den Baum und seine Blüte.


Spring song (Traduction:English)

The sky is blue, the valley is green
The little lilies of the valley bloom,
And primroses underneath;
The meadowland
Is already so colorful
And paints itself more colorful every day.

Come around, you who love May
And look gladly at the beautiful world,
And at the fatherly kindness of God
[So good that] such splendor
Bursts out,
In the tree and its blossoms.

Letra: Ludwig Heinrich Christoph Hölty (1748-1776)
Música: Schubert

Essa canção de Schubert é um presente nesse início de primavera. Entre no endereço: www.das-lied.org opção: The Lieder, escolha "Frühlingslied" e ouça este belíssimo lied na voz do barítono Peter Schöne com Boris Cepeda ao piano.
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Telma Miranda


POEMA I


Duro caminho é o de saber que não há caminho.
O que há são fragmentos de rota que o tecido do acaso
une ou desune. Estar, andar. Identificar-se com as cousas,
com o tempo. Estar aqui, ali. Estar antigamente, estar futuro,
ou buscar-se no espelho onde não há espelho.
Isso é tudo.
Mesmo assim nos sonhamos, e sonhamos
um roteiro, um destino.
Não no espaço, ou no tempo,
Mas na parte de nós, ah, tão frágil, que se devora
e, perdida, se salva.



POEMA II


Só agora é que compreendo haver inventado
tantas maneiras de não ser,
ou de ser, dividido,
disperso.
Ah, vida simplesmente pensada
e não apenas vivida, ou se sonhando entre mil fogos,
e por isso despida
de seu dom de unidade ou de sua própria essência!
Colado à sombra das cousas, viajo, desesperadamente,
dividido, disperso.
Onde estou, não sou.
Nunca sou totalmente.
E é um ficar, sem deter-me, e um partir, sem levar-me.
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Telma Miranda

Poetry - Sanzio Raffaello, 1509

O inconsciente - seja lá o que isso quer dizer - é onde as palavras jazem à espera de redenção. Os poetas sabem disso. O poeta - que difere daquele que escreve apenas versos - vê o mundo de uma forma especialmente particular, única, indizível, enfim, poética. E aí as palavras vêm e ficam a seu dispor. O poeta as (a)colhe e as dispõe de tal forma que a nós só resta extasiarmos diante da beleza com a qual ele embala as simples palavras transformando-as em pontes entre nós e nossa humanidade. Continuo (e continuarei para sempre) a acreditar que precisamos como nunca dos poetas. Nossa sobrevivência como humanos depende, fundamentalmente, da poesia. Eis a nossa chance de redenção.

"Mas, amigo! Chegamos tarde demais.
Decerto vivem os deuses,
mas lá em cima, noutro mundo, por sobre as nossas
cabeças. (...)
Entretanto às vezes melhor me parece
dormir do que viver assim sem companheiros, ter
de esperar assim;
e o que fazer e dizer entretanto
não sei;
e para quê Poetas em tempos de indigência?
Mas eles são, dizes tu, como os santos sacerdotes do
do deus do vinho,
que iam de terra em terra em noite sagrada."

Hölderlin
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Telma Miranda
Em tempos de Bienal é preciso uma reflexão. Hoje, no jornal "O Globo", lemos (relemos) a mesma ladainha: que as pessoas não têm o hábito de leitura, que o maior motivo é a falta de tempo e que o tal "hábito" se forma na infância. Primeira reflexão: "hábito" de leitura não se forma na infância. A primeira relação com a leitura é através do prazer e este só acontece quando encontramos o "primeiro" livro que realmente faça diferença. Este encontro pode acontecer a qualquer momento. Não adianta expor as crianças a livros (muitos deles subestimam qualquer sensibilidade), a exposições (idas obrigatórias pela escola), a peças de teatro "sofríveis", enfim, a toda uma série de atividades ditas culturais de que, dizem, precisamos participar. Ai daquele que ousa, diante do gato torto de Picasso, dizer que o pintor precisava de óculos. "Não, você não compreende. Isto é arte." E ponto. Voltando.
Quando temos nas mãos O tal livro, através do qual realizamos a grande experiência de leitura, aí sim, nos tornamos leitores. A aventura de ler torna-se uma paixão. Primeiro é a paixão, depois (claro) queremos mais, e a leitura pode assim se tornar um hábito. Este encontro pode acontecer a qualquer momento, em qualquer época: aos cinco anos, com o livro escolhido pelo avô, aos nove, na leitura silenciosa na escola, aos quinze com o livro emprestado pela melhor amiga, aos dezoito, com o livro-presente do namorado, aos trinta, quando compramos "A mulher de trinta anos" de Balzac. Segunda reflexão: a falta de tempo, citada como o grande motivo da falta de hábito de leitura, é o motivo, real sem dúvida, pelo qual deixamos de fazer tudo aquilo que nos traz prazer: não há tempo para conversas, para passeios, para ouvir música (sim, para ouvir música mesmo e não fazer uma trilha sonora para dirigir), enfim, o tempo não existe. E não existe mesmo. Por isso precisamos criá-lo. Terceira reflexão: temos que distinguir o leitor de um comprador de livros. A Bienal, por exemplo, que tem lá seus méritos, visa sobretudo o comprador de livros. Essa insistente estratégia junto ao público infantil, não nos enganemos, visa sobretudo à formação de um novo consumidor. O incômodo que causa em saber que há poucos leitores se transforma em um obstáculo às vendas e ao sucesso da indústria dos livros. Afinal, esta indústria não está preocupada com a leitura - e, com ela, que "as ideias voltem a ser perigosas" - e sim com seus lucros. É claro que existem histórias, como as relatadas no jornal, de pessoas que, ao terem contato com os livros - e a Bienal, como tantas outras iniciativas, é bem-vinda - possam se tornar leitores. Mas é preciso estar atento. Até porque há várias outras tentativas nesse sentido - como a de alguém que colocava livros usados em pontos de ônibus - que não tiveram nenhum apoio. Last but not least, o livro tem o poder de nos libertar e nos levar a um tempo sem ponteiros, um tempo de imersão, possibilitando uma inesquecível experiência. A leitura é ameaçadora, é transformadora. Nos tornamos leitores quando um livro se torna "um espelho coberto de areia sobre o qual depositamos, cheios de temor e de pudor, o que trazemos escrito dentro de nós."(José Castello). Só a verdadeira arte é capaz de nos transformar: é quando após a leitura de um livro, de um filme, de um quadro, nos sentimos outra pessoa e, paradoxalmente, nos sentimos, como nunca, tão intensa e verdadeiramente nós mesmos.
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Telma Miranda



Lembro
ainda
quando ouvi,
pela primeira vez,
a valse nº 5 de Chopin.

Dos dedos de minha mãe
vi surgirem
asas,
cores,
que se transformavam em pássaros
que fugiam
voltavam
e novamente
desapareciam
num presságio de alegria...

Um estremecimento, então,
percorreu minhas mãos que,
ainda pequeninas,
desejaram ser as irrequietas avezinhas.

Mais tarde
(enquanto tocava a Berceuse)
percebi,
com o mesmo estremecimento,
que a emoção que nos torna livres como pássaros
também pode
- a mesma emoção –
aniquilar a alma.

Telma Miranda



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Telma Miranda



OPUS III


O luar invade a casa
como uma serenata para cordas.

Na memória
essa lua olha
naquela sala antiga
o amor.

Minto.
Não era a mesma lua.
Nem a mesma sou.

Maria José Giglio


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