Telma Miranda




"Entre o mar e a terra viajo há séculos
sem encontrar céu, sem encontrar céu,
mas tenho a ânsia desse país."

Jorge de Lima em "Tempo e eternidade"



Ao meio dia de hoje recebi a notícia da morte de Moacyr C. Lopes. Conheci Moacyr nos anos 80, quando cursava a faculdade de Letras, e desde então mantínhamos um laço de amizade. Li seus livros com muito interesse e um deles sempre me impressionou pelo vigor da narrativa e um certo clima fantástico: "Belona, latitude noite". O navio cargueiro Belona está perdido na noite, no mar, atingido por uma terrível tempestade e pela peste. Todos os passageiros estão perdidos - em sua própria existência. Belona representa, para mim, nossa própria travessia pela vida. Com os nossos enfrentamentos, paixões, descobertas e sobretudo a estranha vivência da experiência do tempo. Perdidos na noite, vagando pelo "mar" misterioso, buscamos rumo, direção, com os olhos voltados para as estrelas. Talvez seja possível também pensar Belona como uma metáfora de um país, cujo comandante precisa criar um leme, descobrir rumos, conduzir as pessoas. Porém, o mais surpreendente no livro é o jogo com o qual Moacyr nos leva a vivenciar uma forte experiência do tempo:

"...sim, o homem cria vínculos, forma uma tradição de tempo e vivência nos poucos minutos transcorridos..." (Belona, latitude noite)

Sim, Moacyr. Criamos vínculos afetivos, vivemos o tempo cronológico, mas, como disse um crítico (sobre este livro), "libertar-se do tempo é ingressar na eternidade da morte." Hoje, Moacyr, foi a sua vez. Amanhã seremos nós. Boa viagem.
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Telma Miranda
Ato 1

DIVINA COMÉDIA


Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam:—"Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N'um turbilhão cruel e delirante…

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem:—"Homens! porque é que nos criastes?"



Este soneto do poeta português Antero de Quental (1842-1891) nos coloca diante da eterna questão humana: afinal, o mundo existe apesar de nós ou somos nós que o criamos? E se somos criadores, porque criamos os deuses?



Ato 2


O DESCONHECIDO

Tudo é ilusão.

A ilusão do pensamento, a do sentimento, a da vontade. Tudo é criação, e toda a criação é ilusão.

Criar é mentir.

Para pensar o não‑ser criamo‑lo, passa a ser uma coisa. Todos os que pensam ocultistamente criam em absoluto todo um sistema do Universo, que fica sendo real. Ainda que se contradigam: há vários sistemas do universo, todos eles reais.

Nós próprios, porque existimos, somos criações também, portanto ilusões. Mas somos criações de quem? Do Deus que nós próprios criamos? Como se o criamos nós, e lhe somos portanto anteriores? Isso é supondo real o tempo, que é outra criação nossa. Tudo é um amontoado de ilusões.

Aquilo a que chamamos verdade é aquilo a que também chamamos o ser. Verdadeiro é o que é. Mas o que é é ilusão. Por isso a verdade é a ilusão, é uma ilusão.

A que abismo vamos ter?

Quanto mais forte o pensamento, o sentimento, a vontade, maior o poder criador.

O que a ocultistas é verificável é falso. Há imortalidade, mesmo eternidade da alma, mas isto é falso. Há um Deus eterno, criador do céu e da terra, e isto é falso. Ser é não‑ser.

Nunca podemos deixar de criar, por isso nunca podemos deixar de mentir.

A própria ilusão é uma ilusão.

[...]

Não haverá graus na ilusão? Quanto mais criadora uma coisa é mais ilusória. Partindo do nosso espírito, vemos quais as maiores ilusões ...

Tudo se reduz a criar.

Tudo se reduz a iludir-se.

Portanto criar é mentir.



Esse texto filosófico de Fernando Pessoa, outro poeta português, nos transforma em seres criadores e, por isso mesmo, mentirosos. Criamos, mas tudo que criamos não passa de ilusão.



Ato 3

"Para Epicuro, os deuses são realmente o que há de melhor e mais excelente, de modo que podem ser os êmulos de nossas ações. Mas este ideal divino de vida feliz se projeta sobre o homem mais nobre não como um exercício arbitrário de desejo, poder e vontade despótica, mas como a máxima serenidade, a mais imperturbável ataraxia. Os deuses, mais do que qualquer um, são imperturbáveis por nossos feitos, seja para agradá-los, seja para afrontá-los. (...) Não precisamos temer os deuses, nem nos pautar por servi-los. Os deuses absolutamente não precisam em nada de nós."

Outro Fernando, Santoro, em seu livro "Arqueologia dos Prazeres".



Final

Lemos em Diógenes que Epicuro teria criado o tetrafármaco - um conjunto de quatro preceitos criados por ele como uma receita para bem viver. O primeiro deles remete justamente à criação dos deuses. Os homens os teriam idealizados à sua semelhança, diferindo apenas no poder excedente e na imortalidade. Ao projetar seus valores e ideais em seres imortais, os homens acabaram por criar, paradoxalmente, algo que se tornou mais poderoso e forte. Um poder divino ao qual se submetem mas que, ao mesmo tempo, desejam que decida de acordo com a vontade humana.

Criamos deuses para nossa servidão voluntária, abrindo mão de nossa liberdade de ação. Criamos os deuses e desejamos agradá-los - como de resto a todos - e nunca fazemos o suficiente. Estamos eternamente em dívida - de impossível quitação. Sem crédito, aguardamos a sentença:

"O peso do olhar divino sobre as ações humanas faz com que se esteja o tempo todo preocupado em agradar ou não desagradar os deuses, enquanto não se examinam realmente a virtude e a excelência das próprias ações. Responsabilizamos os deuses pelo que nos vem de bom ou de ruim, como se estivessem muito preocupados em nos recompensar ou castigar.(...) Com tudo isso, abrimos mão de exercer nossa liberdade na responsabilidade das decisões e das ações." ("Arqueologia dos prazeres" de Fernando Santoro).

Não sabemos - e nunca saberemos - se foram os deuses que nos criaram ou fomos nós que os inventamos. Não importa. Se os criamos como modelos aos quais queremos imitar e obedecer, o primeiro passo para uma vida feliz, segundo Epicuro, seria justamente livrar-nos dessas projeções transcendentais e viver de forma livre e plena. Afinal, "os deuses não estão nem aí para nós."
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Telma Miranda
Vinha de ler e ouvir Pessoa (na voz de Bethânia). Lembro bem que aos dezessete (por aí) ler Pessoa-Caeiro fazia todo o sentido. Suas interrogações e exclamações ecoavam agudas no meu não-saber. E eram minhas! E um pensamento ingênuo nascia: ele sabe sobre mim! Seus versos eram meus - ou diziam de mim:

Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!


*** *** ***

Dormir! Não ter desejos nem esperanças!

*** *** ***

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!


*** *** ***

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me: Aqui estou!


*** *** ***

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?




Anos depois, talvez mais dezessete, fui apresentada à poesia de Marly de Oliveira. Novo arrebatamento! Havia encontrado uma poesia que sentia como minha, versos que me "diziam", uma nova voz que me levava novamente ao êxtase do sentir poético. O livro "Vida Natural", publicado em 1967, revelava uma poeta inquisitiva que me cativou desde então. Meio "pessoana", é verdade, com seu "questionamento sobre a perenidade das coisas e sobre nosso estar no mundo".

"O sentido das coisas,
onde achá-lo, senão nas próprias coisas?
Ou algo está por trás
da rumorosa vida de um inseto,
da quietude da flor, do meu espanto,
vivendo-nos tranquilo,
e cada dia nos absorve um pouco?"


Ainda

"Sonhamos o que vemos
ou somos nós o sonho
daquilo que não vemos no que vemos?"


E um dos meus preferidos:

"Hoje não vou colher
nem laranjas, nem flores, nem amoras.
Vou ver crescer o dia
no redondo das frutas,
e ouvir sem pressa o canto destas aves.

Serão as mesmas de ontem?
Um dia a mais que fez de mim, que faz?
E as aves que cantavam,
se não são estas, onde
estão? O canto apenas se repete?

Aquela que ontem via
o que ora vejo, não é mais em mim?
Então me renovo
como as águas e as plantas?
Sou outra, ou me acrescento ao que já sou?

No entanto, é tudo igual,
embora eu saiba que só na aparência;
e meu prazer me vem
de estar sentada aqui,
detendo um tempo que se não detém."


Há muito....

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Há pouco ganhei um encarte com poemas de Marly na voz de Lauro Moreira Lima. No livro intitulado "O sangue na veia", encontramos versos "onde há o desejo de desligar o conceito de amor do de paixão" (palavras da própria Marly). E é dentre os 56 poemas que compõem este livro que Lauro escolhe alguns que são apresentados aqui neste vídeo. Para nosso enlevo e elevação da alma.


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