Telma Miranda
Um acontecimento marcante da minha formação foi quando, no início da adolescência, participei de um grupo de jovens de uma paróquia em um subúrbio do Rio. Principalmente quando alguns componentes do grupo decidiram se insurgir contra as atitudes autoritárias e pouco cristãs do pároco. Criamos então um grupo independente e nos reuníamos inicialmente no porão da igreja e depois na casa de um dos participantes. Era início dos anos 70. Tocávamos violão, cantávamos em um coral, jogávamos War e líamos. Havia uma espécie de biblioteca ambulante. Eu era a "mascote" do grupo, pois era realmente muito mais jovem do que os outros participantes. Daí que, muito cuidadosos, eles me proibiram de ler dois livros que constavam da lista. Um de Jorge Amado (não era linguagem apropriada para uma menina) e outro de Herman Hesse de que, diziam, eu não compreenderia nada. Óbvio que peguei os dois e os li escondidos. "Tereza Batista" não chegou a me impressionar, mas ler "O Lobo da Estepe" foi uma experiência e tanto. Claro que não entendi nada, mas lembro que a experiência da leitura foi muito marcante. Bom, e o que seria um experiência marcante de leitura se não se entende nada?

Vez por outra me faço essa mesma pergunta. Leio poemas que muitas vezes não compreendo e mesmo assim às vezes gosto, às vezes não. E sei que muitas pessoas passam por essa espécie de "desconforto" e dizem apenas "nossa, que lindo!" no lugar de "nossa, não entendi nada". Em uma entrevista publicada no caderno Prosa e Verso (do jornal O Globo), em junho desse ano, por ocasião da FLIP, a poeta escocesa Carol Ann-Duffy diz não se interessar muito quando dizem que seus poemas são "acessíveis" (seja lá o que isso quer dizer). Diz ela: "Um bom poema deve ser acessível na superfície, mas ter algo mais por debaixo, de modo que ele talvez não seja o que parece." Sem dúvida. Aliás, o poema seu publicado no mesmo jornal não deixa nenhuma dúvida sobre a sua assertiva. *

Há poemas assim: entra-se aos poucos nele, ele cresce dentro da gente, e puff! se instala por completo, inteiro, unindo no mesmo flash o não-entendimento e uma compreensão absoluta.
Há aqueles que entendemos "de cara" e depois, oh, céus, vemos que havia muito mais e que há, na verdade, vários outros "entendimentos".
Há aqueles tão herméticos que só um outro poeta pra entender (às vezes nem isso...)
Há aqueles que passam e quase não sentimos, há aqueles que se mudam pra dentro da gente, há aqueles que nos deixam mudos, outros que nos instigam a falar deles.
Há uns que são bons pra ler em voz alta, outros, só na solidão mais absoluta.

Recortei de um jornal antigo (que espero seja deste século, senão, imaginem, guardar jornal do século passado!!!) poesias que, lembro-me bem, me deixavam meio intrigada na época. Primeiro, era mesmo poesia? Segundo, que diacho quer ela dizer com isso? Mas lembro também que ficava, mesmo sem entender, paralisada/mobilizada/extasiada. ** Será que eu era mais jovem e, mesmo não tendo os treze de quando da leitura de Hesse, ainda podia sentir essa estranha sensação? Talvez tenha sido a mesma sensação como a que descreveu Stephen Greenblatt (ah, essa entrevista, ao contrário, é recentíssima: sábado 03/12/2001 no Prosa e Verso) sobre sua experiência de ter lido "O processo" de Kafka e não ter entendido absolutamente nada. "Não compreendi as relações entre os personagens, não entendi por que o homem cometeu suicídio no final da história, nada fazia sentido pra mim. Fechei o livro, e me lembro de momentos depois sentir um incrível...não posso realmente explicar, não tenho as palavras certas para isso. Mas foi algo como se alguém tivesse tangido com força uma corda dentro de mim. Isso não aconteceu porque eu entendi, mas porque eu não entendi".

Ah....
Entendi!




* Faço a transcrição do poema de Carol Ann-Duffy em inglês pois ainda não há tradução:

Cold

It felt so cold, the snowball which wept in my hands,
and when I rolled it along in the snow, it grew
till I could sit on it, looking back at the house,
where it was cold when I woke in my room, the windows
blind with ice, my breath undressing itself on the air.
Cold, too, embracing the torso of snow which I lifted up
in my arms to build a snowman, my toes, burning, cold
in my winter boots; my mother's voice calling me in
from the cold. And her hands were cold from peeling
then dipping potatoes into a bowl, stopping to cup
her daughter's face, a kiss for both cold cheeks, my cold nose.
But nothing so cold as the February night I opened the door
in the Chapel of Rest where my mother lay, neither young, nor old,
where my lips, returning her kiss to her brow, knew the meaning of cold.


** Aí vão três "experiências" colhidas da Folha de São Paulo. Há muito tempo. São de Ledusha Spinardi:

1.
Sustenidos e Bemóis

Bela bélica e babélica Ofé-
lia à beira do lago. Lima a lín-
gua em labaredas seca para
serrar até o sono dos sapos.
Gelada de mato e garoa a
ninfa espia da moita. Ofélia
freme. Mastiga palavras mal
ditas. Enquanto abana faís-
cas frésias salpicam-lhe a fa-
ce. Alfa, a ninfa, senta-se aos
pés da outra. Garças alvas
pinçam poças, lentas nas
pernas flébeis. As duas mi-
ram. Olhos de lágrimas fá-
ceis. Uma ais outra ohs: sus-
tenidos e bemóis. Suspiros
em róseo uníssono pertur-
bam girassóis.

2.
Bálsamos urbanos

Meus olhos derrapam no
sorriso implícito. Água que
aflora fria da pedra e lambe a
pele salgada, jorro vigoroso
de vinho fresco na sede sen-
sual da alma e do corpo. Su-
bo essa escada rolante às
mesmas 18h17. O tumulto
dos passos no granito em
torno soa como Debussy aos
meus ouvidos. A pálida pos-
sibilidade de que tudo se re-
pita faz crepitar meu umbi-
go. Metida na polpa sucu-
lenta da vida, atenta a certos
encantamentos que na cida-
de surrada pela urgência e
pelo excesso escasseiam, sa-
boreio os respingos incertos
da felicidade.

3.
Terra à vista

Na solitude líquida do
mergulho, acidentes de per-
curso, escalas involuntárias
nos esqueletos dos cascos de
navios esquecidos, silêncio
turvo povoado de sombras e
ímãs. Olhos arregalados na
dança intraduzível. Depois
dos muitos sustos, do des-
conforto limboso nos pés,
feixes intermitentes de luz
sinalizaram a existência ple-
na da superfície. Na esme-
ralda de sonho e algas dei-
xou a lua submersa aos ui-
vos. Tateando a substância
renovada que a envolvia, po-
de sentir a cauda ondulante,
tecida em finos fios, conchas
e sílabas. Lambeu a leda lá-
grima da água e lançou o te-
souro da juventude aos pei-
xes.
Telma Miranda
Um jovem amigo (muito jovem, adolescente ainda) me perguntou um dia como escrever uma crônica. Dei-lhe uma resposta nada original: observe uma borboleta ( não precisa ser a famosa borboleta amarela do Braga) e depois escreva sobre o acontecido: a borboleta, o dia, seus pensamentos, suas sensações. Simples assim? Bom (pensei em refutar, dissertar, explicar, mas desisti)... é... simples assim.

Revendo jornais antigos, encontro uma crônica de Luis Fernando Veríssimo intitulada "Crônica:definições". Com seu humor habitual, ele faz uma distinção - quanto à qualidade da crônica - entre:
a) crônica; b) croniqueta; c) cronicão; d) cronicaço.
Cronicaço é a grande crônica, aquela que consagra seu autor, diz Veríssimo. Já cronicão é a crônica grande, "tem até ponto e vírgula e citação do Montaigne". A crônica é "qualquer crônica, ou uma crônica qualquer". Vamos à croniqueta. Diz ele:

Croniqueta não é o nome científico da crônica curta, como pode parecer. É uma crônica inconsequente, geralmente sobre coisa nenhuma, escrita com desinteresse para ser lida com pouco caso e cara de nojo. Se muita gente recorta crônicas do jornal para guardar, muitos recortam, cuidadosamente, a croniqueta para atirar no chão e pular em cima, gritando argkght!

Considerações. Primeiro, se guardei essa crônica do Veríssimo ( e nada de argkght!) é porque não a considerei inconsequente. Eis aqui o resultado (tudo bem, tudo bem; se o resultado não é tão bom, a culpa é minha e não do objeto inspirador). Segundo, se essa minha croniqueta for lida, espero que seja salva pelo menos em consideração às referências que faço ao grande cronista (também porque vai ser mais complicado pular em cima da tela do computador). Terceiro, gostaria de acrescentar outra categoria: a croniquinha. Que não quer dizer que seja curta, nem completamente inútil. O diminutivo indicaria o lado afetivo de, por exemplo, achar um recorte de um jornal antigo, ler com prazer e escrever sobre os pensamentos e sensações decorridas da leitura. Tudo bem, tudo bem. Sei que não é simples assim. Mas pode ser. Pelo menos para uma croniquinha. Que nem esta.
Telma Miranda
Todos nós temos nossas manias. Tenho algumas. (Vamos lá, confesse!). Tenho várias. (Agora que confessei, não consigo me lembrar de mais de duas). Tenho algumas. Uma delas é guardar jornais para ler depois. Sempre acreditamos em um "depois" (idealizado, claro) como sendo mais propício: com mais tempo, mais chuva, mais tranquilidade. E sempre nos surpreendemos quando o idealizado não acontece. Condição humana.

Enfim, humanamente maníaca, guardava-os em um canto. E os jornais se acumularam, entulhando-me. Um dia de dezembro dou-me (a) conta do acontecido. Diante da "barata" (não literalmente, por favor, que não tenho sucos gástricos lispectorianos), paralisei-me. E agora? Jogo tudo fora e me orgulho de mim mesma por tal ato inesperado e heróico? Ou dou ainda uma "olhadinha" e guardo "apenas" o que ainda possa ter algum "interesse"?

Já adivinharam a resposta. Certamente não estaria aqui (des)escrevendo minha "vitória" e, sim, escrevendo para.... (Umberto Eco disse em uma entrevista no Caderno Mais, Folha de São Paulo em 11 de maio de 2008 que ele continua escrevendo porque.... ih.... esse se foi ...) dar continuidade e substância à minha mania. Mas, caríssimos, tenho que confessar (de novo?) que o prazer é enorme. E em dobro. Explico. Primeiro prazer é o de fazer acontecer "o" dia ideal. Sábado, chuvinha inesperada e temperatura amena mais inesperada ainda em dias de dezembro, ouvindo "Desert Rose" de Sting, mergulho minhas mãos entre os papéis-jornais. Abaixo o volume. Leio (achei! Umberto Eco!):

Não acredito na felicidade. Acredito apenas na inquietude. Ou seja, nunca estou feliz por completo - sempre preciso fazer outra coisa. Mas admito que na vida existem felicidades que duram 10 segundos ou meia hora. (...) Existem momentos de felicidade quando vc consegue expressar alguma coisa que o deixa contente. (...) Acredito ainda que a vida serve apenas para recordar nossa própria infância. Cada momento em que consigo me recordar bem de um instante de minha infância é um momento de felicidade, mas isso não quer dizer que os momentos de minha infância tenham sido momentos de felicidade. A infância e a adolescência são períodos muito tristes. (...) Algo de muito bonito que ocorre ao envelhecermos é que nos recordamos de um multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas. (...) Por isso, vou ao encontro de minha velhice com muito otimismo, porque, quanto mais envelheço, mais recordações tenho de minha infância.

E eis meu segundo grande momento de prazer: perceber a felicidade nos poucos segundos dessa leitura. E não importa se concordo ou não com o depoimento, se foi escrito em 2008 ou 2010, se foi de Umberto ou Borges. A felicidade, quase não a sinto mais, foi do acontecimento em si: a música, o vento entrando pela janela, o contato com o papel-jornal, a pausa, nova música ("Fragile" ainda com Sting), e o cheiro da dama-da-noite que insiste em tanto florir nessa manhã de fim de primavera.

Momentos memoráveis. E de repente o que era passado se torna presente e o presente se enche de um passado tão vivo. Daí que as lembranças evocadas pelos jornais antigos podem se tornar tão doces "presentes"...


PS:
1.Em entrevista publicada no caderno Prosa e Verso do Jornal O Globo - 31 de janeiro de 2009 - uma pianista chinesa afirma que há humor na música de Bach, principalmente nas "Variações Goldberg". Na décima e décima oitava. A conferir.
2. É possível que o título dessa postagem se torne um "marcador" e aí teremos outras "croniquinhas" acerca de "Jornais Antigos". Ou não.
3. Se houver a próxima, será exatamente sobre "Crônica:definições" - texto de Veríssimo publicado em.... sei lá, só sei que foi em uma revista de um jornal já extinto. Ui!
4. Me apaixonei (de novo) pelo Sting.
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Telma Miranda
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa (1924)



"For the love of God", com Steve Vai:

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Telma Miranda

Qualquer música


Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônio, realejo…
Um canto que se desgarra…
Um sonho em que nada vejo…

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida…
Que eu não sinta o coração!

Fernando Pessoa



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