Telma Miranda

A Demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.

Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto



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Telma Miranda
Lembrança alada

Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.

Mia Couto




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Telma Miranda


"Assim tenho por verdadeiras as palavras de Arquitas de Taranto, que entendi recordar a velhos que as ouviram eles próprios de seus pais: "se alguém subir ao céu, e de lá contemplar a beleza do universo e dos astros, todas essas maravilhas deixá-lo-ão indiferente, enquanto que o embasbacarão de surpresa se tiver de contá-las a alguém". Assim, a natureza do homem se recusa à solidão, e parece sempre procurar um apoio: e não o há mais doce que o coração de um terno amigo"  


"Diálogo sobre a amizade" - Marcus Cícero (106-43 a.C.)



Este foi o início de tudo -- o "Andante affettuoso"... Ele foi concebido anos atrás (não sei mais se em 2009 ou 2010...). Ato contínuo, o meu pensamento buscou integrá-lo em uma sequência que pudesse dar um amplo sentido à obra. Então, pensei: "por que não uma... sonata?"...
Obviamente, alguns puristas poderiam apontar o dedo e torcer o nariz quanto à observância (ou falta dela) no que concerne à tradicional forma-sonata. Mas isto agora não tem mais importância.
Pois é como diz o vento:
"Fecha os olhos e escuta o que eu digo...! Nada busque farejar, pois o sentido do meu sopro transcende as coisas da terra..."
É isso...
Tiago Oliveira
Telma Miranda



"Tavern Scene" - Velázquez (Espanha, 1599-1660)



Vida e Obra

Repare, Cícero, que os copos se tornam
mais leves quando cheios de vinho.

E você há de concordar comigo, a cada copo
essa impressão cresce. Deuses, vazio,

canções, vinho: este é um poema sobre poemas
e amizade.

Repare que o mesmo se dá conosco: o peso
faz-se leve em nós se um verso nos acontece.


Eucanaã Ferraz




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Telma Miranda
Giuseppe Tartini (1692-1770) foi um violinista e compositor do barroco italiano. Sua obra mais conhecida é a Sonata nº 2, Op.1 - "Trilos do Diabo". Contam que ele teria tido um sonho:
“Uma noite sonhei que tinha feito um pacto com o diabo, o qual se dispôs a me obedecer, em troca de minha alma. Meu novo servo antecipava meus desejos e os satisfazia. Tive a ideia de entregar-lhe meu violino para ver se ele sabia tocá-lo. Qual não foi meu espanto ao ouvir uma Sonata tão bela e insuperável, executada com tanta arte. Senti-me extasiado, transportado, encantado; a respiração falhou-me e despertei. Tomando meu violino, tentei reproduzir os sons que ouvira, mas foi tudo em vão. Pus-me então a compor uma peça – Il Trillo del Diavolo – que, embora seja a melhor que jamais escrevi, é muito inferior a que ouvi no sonho”.


Se foi "il diavolo" ou o inconsciente, não importa. O que importa é que existe um Itzhak Perlman que traduz o sonho na alma da gente:



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Telma Miranda



"Narcisso Speculando" - Madrigais,  Paolo da Firenze (1355 - 1436)

3.
Diante de mim, nestas águas
quem sou, que não me preciso?
Ai, que sonho tão temível
assim me turva o sorriso?
Que amor, que presságio cingem
a cabeça de Narciso?
A que secretos poderes
se confia minha sorte,
se o que frágil vejo na água,
em mim se torna mais forte,
e onde sei que está a vida
encontram todos a morte?
Entre mistérios tão vastos
que breve instante que somos!
De repente descobrimos
que estamos. Mas onde? e como?
Por mais que nós nos dobremos
sobre nós e o que já fomos,
à inútil pergunta nossa
somente o eco responde.
E diante outra vez de nós
estamos. Há quem nos sonde?
E de que espaço ou que tempo
nosso eco responde? de onde?

                                       *     *     *


5.
Minha face prateada pela tarde
nativa de zagais e alegorias
é um reflexo de mim tornado arte,
do centro imóvel que gerou meu dia.
A mão é um rio de coral filtrado
entre conchas de som que o sonho fia,
e são as veias um caminho vasto
para um sangue de amor e de agonia.
Em torno a mim os mármores do tempo
tecem tramas de eterno meio-dia,
e me dissolvem no seu pensamento.
Há cavalos de amor de crinas frias
arrastando-me sempre para dentro:
que eu mesmo sou a minha companhia.



                                    *       *       *


19.

Consomem-se os laureis da minha vida
em quatro dias, quatro eternidades
memoráveis de esperas e de lutas
contra mim mesmo e o tempo que me cabe
com seu noturno archote e muda flama,
e este silêncio, que é de amor ainda,
rastejando seus males e o infortúnio
contra um redor de festas e vindimas.
Um céu pressago sobre mim desaba
seu manto esquivo e azul com mãos tão frias
que o coração e tudo em mim naufraga
avaramente, e logo se aniquila,
como a sombra que em sombra se desata.
E estou tão só que a solidão cintila.


Extraídos do livro "Explicação de Narciso" de Marly de Oliveira (1935-2007)

     


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Telma Miranda

Bilhete a Heráclito

Tudo deu certo, meu velho Heráclito,
porque eu sempre consigo atravessar esse teu outro rio
com o meu eu eternamente outro....


       *     *     *

Nunca dês um nome a um rio:
sempre é outro rio a passar.


Mário Quintana (1906-1994)







"E nada me permite afirmar que eu sou, eu o ego, o mesmo através do tempo. Nada me permite, pois perdi o tempo, perdi a memória e já esqueci quem sou. Nem mesmo posso dizer: "eu sou", mas apenas: "há algo", "algo acontece, é vivido, é a vida".
Mikkel Borch-Jacobsen


Sou Apiaká-kayabi, Sateré-Mawé, Waiana Apalai, Guarani-Kaiowá, Yalawapiti.....
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Telma Miranda















Tríptico com melopeia

Sob a pele 
lento e surdo 
um lume. 
Pelas ruas 
somente a palha 
o velho cascalho 
das palavras.

Onde os claros, longos dias do Verão? 
Onde uns olhos amorosos, a chamar?

Tortos mortos rios
as planícies devastadas. 
Pedra e cal 
e a mó moendo infatigavelmente.

Distante, muito além 
um obstinado fagote
recorrente e rouco.

Henrique Chaudon


               Não resisti e embarquei, quando li esse belo poema do Henrique Chaudon, 
nos sons da memória.  Um fagote. 
              A primeira lembrança, certamente também para muitos, é a peça musicada de Prokofiev "Pedro e o Lobo". O som grave do fagote anunciava as advertências do avô contra o heróico desejo de Pedro: caçar o lobo. 
             A outra grata lembrança foi quando conheci Noel Devos em uma apresentação da  Orquestra Sinfônica Brasileira. Noel nasceu na França, mas veio para o Brasil na década de 50 como primeiro fagotista da OSB. Ainda tenho um LP dele, comprado na ocasião, intitulado: "Francisco Mignone - 16 valsas para fagote solo". Um solo de Noel Devos. E constatamos: um fagote recorrente e rouco. Ah... mas também tão doce...
   





Telma Miranda

O contrabaixista Ron Carter dizia que sua função num quinteto de jazz (ele foi o contrabaixista do quinteto de Miles Davis) era tocar sempre a nota que impedisse os outros músicos do grupo de tocar a nota que eles imaginavam que iam tocar, obrigando-os sempre a encontrar uma nota inesperada.  Penso sempre nessa frase, obsessivamente, e acho que é porque, no fundo, a vida, tal como a vivo, é o meu Ron Carter, sempre fazendo soar a nota que me impede de tocar a nota que eu achava que ia tocar, e me obrigando a encontrar outra, à queima-roupa, numa fração de zepto-segundo.  Às vezes desafino feio, falho, perco o tom e o rebolado, e os amigos me vão recolher no lixo do beco atrás do enfumaçado e noturno "Pub dos Corações Solitários", entre trapos de lágrimas, gatos e espinhas de peixe, e outras vezes mando tão bem que o pequeno público do enfumaçado e noturno "Pub dos Corações Solitários" se levanta, dança na pista e entre as mesas, esboça um sorriso entre as lanterninhas japonesas dos cigarros e os copos de gim e ao final aplaude e grita, olhos brilhando: "mais um!".  E eu toco um novo solo feito das lembranças de ter sido recolhido no lixo, entre trapos de lágrimas, gatos e espinhas de peixe.  Disse o Paul Valéry que um leão é feito de carneiros devorados, eu sou um carneiro feito de leões ferozes ludibriados, e amo cada palavra escrita pelo poeta peruano Antonio Cisneros, morto semana passada, aos 69 anos. Que dor no coração escrever estas palavras."

Carlito Azevedo (O Globo, Prosa e Verso, 27/10/2012)








 Café en Martirok Utja


Hay una lámpara floreada sobre el piano
y una estufa de fierro.
Bebes el vino junto a la única ventana:
un autobús azul y plata cada cinco minutos.
  Pides el cenicero a la muchacha
(alta flor de los campos ven a mí).
La luz del otoño es en tu vaso
un reino de pájaros dorados.


Pero pronto anochece.
Los autobuses no son azul y plata,
el cenicero es una rata muerta,
el vaso está vacío.
La muchacha partió cuando encendieron
la lámpara floreada y tú mirabas
la lámpara floreada.


Puedes pedir otra jarra de vino,
pero esta noche
no esperes a los dioses en tu mesa.


 

Antonio Cisneros (1942-2012)
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Telma Miranda


História verídica

Um senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos.  O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.
Agora esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amigável, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução.  Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica que os óculos viraram farelo.  Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.


 Julio Cortázar - "Histórias de cronópios e de famas"






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Telma Miranda

Queja Señor, mi queja es ésta, tú me comprenderás: De amor me estoy muriendo, pero no puedo amar. Persigo lo perfecto en mí y en los demás, persigo lo perfecto para poder amar. Me consumo en mi fuego, ¡señor, piedad, piedad! De amor me estoy muriendo, ¡pero no puedo amar!

  Alfonsina Storni (Argentina, 1892/1938)

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Telma Miranda



Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pode ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis.  E lá no fundo está a morte,  se não corremos e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

*********


Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo

........
Sabe-se de um caixeiro-viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo, justo debaixo do relógio de pulso.  Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida mostrava os sinais de uns dentes muito finos.
..........


Julio Cortázar - "História de cronópios e famas"
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Telma Miranda


Ocaso do século


Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX.
Agora já não tem mais jeito,
os anos estão contados,
os passos vacilantes,
a respiração curta.

Coisas demais aconteceram,
que não eram para acontecer,
e o que era para ter sido
não foi.

Era para se chegar à primavera
e à felicidade, entre outras coisas.

Era para o medo deixar os vales e as montanhas.
Era  para a verdade atingir o objetivo
mais depressa que a mentira.

Era para já não mais ocorrerem
algumas desgraças:
a guerra por exemplo,
e a fome e assim por diante.

Era para ter sido levada sério
a fraqueza dos indefesos,
a confiança e similares.

Quem quis se alegrar com o mundo
depara com uma tarefa
de execução impossível.

A burrice não é cômica.
A sabedoria não é alegre.
A esperança
já não é aquela bela jovem
et cetera, infelizmente.

Era para Deus finalmente crer no homem
bom e forte
mas bom e forte
são ainda duas pessoas.

Como viver - me perguntou alguém numa carta,
a quem eu pretendia fazer
a mesma pergunta.

De novo e como sempre,
como se vê acima,
não há perguntas mais urgentes
do que as perguntas ingênuas.

Wislawa Szymborska
Tradução de Regina Przybycien
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Telma Miranda
Vincent Van Gogh



Barcos

Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico
Rói a solidão


Sophia de Mello B. Andresen





Telma Miranda
" o espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. o espírito é uma criatura muito ávida de ocupação. precisa de se ocupar constantemente. o espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com qualquer coisa. enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta."

"A desfazer-se" - Vera Mantero


Glenn Gold - Variações Goldberg - parte I
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Telma Miranda


Lake George - John Frederick Kensett (1860)



Abril

Eu disse: quem pôs aqui este rio?
Alguém tinha desenhado na paisagem
um cenário para a nossa história.
Manchas inteiras de urze, papoilas,
giestas. Até se disse em Terena
que Abril não vinha assim tão verde

há muito tempo. Sim, tinha chovido muito
nesse ano, mas nada esteve por acaso,
nem o céu de manhã cedo nos castelos
com a erva a crescer dentro e fora das muralhas,
nem sequer a nossa primeira noite, aquela

em que esperaram por mim noutro lugar.
Sozinho, sem outra defesa que não fosse
a minha própria solidão, eu estive onde tu
me pudesses encontrar. E depois subimos juntos
a rua molhada. E já chovia por Abril sem o sabermos.


Rui Pires Cabral (1967)

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Telma Miranda



Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas,
Lo mismo que un árbol en tiempos de otoño se quedan sin hojas.
Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas,
Esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.

Uno vuelve siempre a los viejos sitios en que amó la vida,
Y entonces comprende como están de ausentes las cosas queridas.
Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

Demorate aquí, en la luz mayor de este mediodía,
Donde encontrarás con el pan al sol la mesa tendida.

Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

Telma Miranda










 





Fevereiro. 2012. Quando ainda havia jornal nas bancas. 
  • Sábado de fevereiro. Há algo mais desanimador? (Claro, do meu ponto de vista - que é sempre a vista de um ponto.) Haveria algo mais animador? Ler jornal. Ora, ora, dirão alguns, nada mais desanimador. De novo, depende do ânimo de cada um. Começo a leitura. De novo, no primeiro caderno do jornal , quase nada. Segundo caderno: ótimo texto do Wisnik - que aprendi a admirar - sobre a poesia de Wislawa Szymborska (que nos deixou enlutados e melancólicos no primeiro dia desse fevereiro). No caderno Prosa e Verso, um texto lúcido e consistente do João Cezar sobre literatura e crítica. Pausa para um café. Retorno ao segundo caderno e me animo ao saber que sete cinemas de rua do subúrbio do Rio vão reabrir (Cine Cachambi!!!), que os bailes de carnaval estão em alta e que um subsecretário de Patrimônio (que lutou pela retirada das grades da Praça Tiradentes) afirma que "gente circulando traz mais segurança que as grades"! Meu sábado está salvo!
  • Uma grande amiga anuncia, no almoço de quinta no Sagrada Família da Rua do Rosário, que cansou de correr atrás da felicidade. E, incrivelmente, anda se sentindo mais feliz. Não me surpreendi, portanto, quando Guilherme Gutman, em sua resenha sobre a nova tradução do elucidativo texto freudiano - "Luto e melancolia" -, afirma que neste texto "há alimento suficiente para todos aqueles que, de algum modo, percebem que a felicidade não é o ponto de chegada de uma vida, mas, quando muito, um lugar de pouso." E que uma vida interessante pode ser mais ampla que uma vida feliz. Sábia, a minha amiga.
  • Last, but no least, um grande poema de Wislawa para salvar o sábado de todos nós:

Autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

(tradução coletiva, publicado em Inimigo Rumor 10)
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Telma Miranda
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Telma Miranda

"Fiz o possível para entrar nele com o pé direito, mas quando vi
ele é que tinha entrado em mim, não deu para recuar."

Luis Fernando Veríssimo (em 1976)