Telma Miranda

Em setembro de 2009, escrevi um texto sobre hábitos de leitura e Bienal, movida por uma matéria jornalística. Volto ao tema, igualmente inspirada pelos jornais. Desta vez, diferentemente do meu texto anterior (sobre a leitura), para me confraternizar com as idéias de Michèle Petit, expostas em uma entrevista publicada em 20 de fevereiro de 2010. Um trecho da entrevista vai ao encontro do que penso: "Certos discursos de glorificação da leitura dão vontade de jogar videogame! E os discursos jamais fizeram alguém ler, tampouco as campanhas de massificação para "criar" ou "formar" leitores. Seja pai ou professor, quem diz que uma criança tem que ler ( ou pior: que tem que gostar de ler!) faz da leitura um fardo ao qual ela precisa se submeter para satisfazer os adultos." Na verdade não é com suas idéias que comungo, mas sim com todo um pensamento já existente que ela, como antropóloga estudiosa, sistematizou em livros. A idéia da leitura (silenciosa ou compartilhada) como dispositivo para criar espaços de liberdade e resistência, de estruturação da subjetividade e das relações sociais é inegável. Há várias iniciativas neste sentido no Brasil (http://tracasdobem.blogspot.com/, http://www.aletria.com.br/, http://www.acordaletra.com.br/ e tantos outros), além de produções cinematográficas - como "Narrativas de Javé" e "Abril despedaçado." - que abordam o tema da transformação através da leitura. A questão não é, como foi dito, formar leitores mas compartilhar palavras e daí ser possível se apaixonar pelo livro, criando laços subjetivos e sociais. Lembro-me sempre, quando abordo esse assunto, de uma cena de um filme de 1960, dirigido por Kubrick, protagonizado por Kirk Douglas, um líder forte e corajoso do povo de Esparta. Uma noite estão todos ao redor de uma fogueira quando o poeta (interpretado por Tony Curtis) lê e magicamente todos ficam extasiados diante da leitura. O grande guerreiro Spartacus, que não sabia ler, se revela frágil e sensibilizado diante do poeta e da força de suas palavras. Cena comovente para quem sabe das transformações advindas da palavra - escrita ou falada. A viagem através das palavras é libertadora, pois ocorre na imaginação de cada um, onde não há cifras, grilhões e sim todas as possibilidades de existência.
Telma Miranda
A verdadeira viagem de descoberta
não consiste em procurar novas paisagens,
mas em ter novos olhos...

(Marcel Proust)


Percebi isso há muito tempo. Quando, não sei ao certo. Era muito pequena, mas lembro que meu pai me levava a passear em Niterói e ficávamos horas esperando a hora de embarcar em uma enorme barcaça que atravessava a baía levando os carros - como o karmanguia azul de meu pai- e minha admiração. O rosto gelava com o vento, enquanto os olhos - espremidos - se fartavam de paisagem durante aquela travessia que durava uma eternidade. Alguns anos mais tarde, já universitária, voltava da faculdade na barca das 23:00. A paisagem noturna era sempre estranha, com luzes brilhantes contrastando com o breu da baía. Mais alguns anos e muitas idas e vindas, sempre me surpreendo, pois a cada vez que desbravo a baía, ela é sempre a mesma e sempre outra. Um dia, uma amiga me disse que, durante uma viagem, teve uma experiência interessante: aprendeu sobre o "olhar de turista". Sim, olho de turista. Um olho admirado, como quem vê pela primeira vez. Como um olho de um poeta, de um filósofo, ou mesmo de alguém disposto a viver somente aquele dia. Palavras dela: "atravessar a baía hoje, para mim, é sempre um passeio e me encanto sempre, como alguém que está de passagem". Mais. Ela fala sobre uma certa elegância que nada tem a ver com recursos financeiros. Palavras ainda dela: "posso ir a Paris, não visitar o Louvre e ficar lendo Drummond sentada em um banco do Jardim de Luxemburgo, assim como posso ler Baudelaire em francês a bordo da barca Itapuca". Sábia essa minha amiga; e a compreendo perfeitamente. E imagino que, mesmo não sendo mais aquela menina admirada com a travessia, sei que de alguma forma ainda sou ela. Que mesmo diante de um mundo de sempre (e sempre outro) e das mesmas paisagens, sei que ainda é possível descobrir novos olhares.


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Me lembro ainda de um apólogo ( ou uma parábola, enfim) que havia no livro de leitura silenciosa, nos anos idos. Um homem queria saber o que é a felicidade. Resolveu perguntar a um sábio que, naturalmente, respondeu que não sabia, mas poderia indicar um caminho e pede que ele lhe diga o que está vendo:
- Vejo o mundo, senhor...
- Olha mais!
- Vejo campos, serras, nuvens no céu, bois no campo...
- Olha mais!
- Nada mais vejo, senhor!
- Olha bem!
- Senhor, nada mais vejo.
- Como posso te mostrar o caminho da felicidade, se é isso apenas o que vêem os teus olhos?
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Telma Miranda
The Tyger

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare seize the fire?

And what shoulder, and what art,
Could twist the sinews of thy heart,
And when thy heart began to beat,
What dread hand? and what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And water'd heaven with their tears,
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye,
Dare frame thy fearful symmetry?

William Blake (1757-1827)




O TYGRE



Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?

Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chamma?
Que mão colheu esta flamma?

Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que cor, que ação?

Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo? Que fornalha
o moldou? Que mão, que garra
seu terror mortal amarra?

Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?

Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?

Tradução: Augusto de Campos
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Telma Miranda

Sempre se cantou, de forma dramática, a dor da separação. As letras românticas revelam um sofrimento desesperado pela perda da pessoa amada. Quanto mais tristes estão, mais as pessoas desejam ouvi-las. Sem dúvida, a separação fere, e o amor romântico, por mais que se apresente como maravilhoso de ser vivido, traz mais sofrimento que alegrias.

Quando se rompe uma relação amorosa, aquele que não desejava o desfecho é tomado por profunda angústia e tristeza. Desde crianças aprendemos uma mentira bastante limitadora: só podemos nos realizar afetivamente através de uma relação amorosa estável — namoro ou casamento. Além disso, existe o hábito de se confundir amor com desejo. Ouvir alguém dizer “Não te amo mais” abala a auto-estima, é doloroso e desnecessário, porque na maioria das vezes não corresponde à realidade. A não ser que tenha havido alguma desavença grave ou então que se trate do amor romântico, aquele ao qual não se pode dar crédito, por não possuir quase nada de real, por ser inventado, idealizado. Mas não é desse tipo de amor que quero tratar agora.

Refiro-me ao amor de verdade, em que se percebe o outro com suas próprias características, amando-o pelo seu jeito de ser. Pode-se viver junto, com satisfação durante algum tempo, mas não é raro que, num determinado momento, surjam novos anseios. Não se deseja mais conviver diariamente com aquela pessoa, nem se sente mais desejo por ela. Entretanto, não significa absolutamente que o amor tenha acabado. Gilberto Gil percebeu isso quando compôs Drão para a ex-mulher: Drão/não pense na separação/não despedace o coração/o verdadeiro amor é vão/estende-se infinito/imenso monólito/nossa arquitetura/Quem poderá fazer/aquele amor morrer/nossa caminha dura/cama de tatame/pela vida afora...

Mas é comum se aceitar o amor dentro de limites tão estreitos que ele se torna um sentimento frágil. Acredito numa incompetência generalizada para a vida amorosa. Poucos conseguem depois da separação continuar amando seu antigo parceiro e sendo amado por ele. Um deve ser excluído para que se coloque outro no lugar. Entretanto, a relação amorosa é rica, variada, podendo se realizar de modos diversos. Com o ex geralmente ela se transforma: passa a ter novos códigos e menos convívio. Mas não tem nada a ver com estar amando menos.

É mais ou menos como se plugássemos o afeto pelo antigo parceiro em outro canal, sem que ele diminua de importância na nossa vida. Na hora em que nos dispusermos a reformular o modelo de separação, não será tudo muito mais fácil?

Regina Navarro
Telma Miranda
"Shall I compare thee to a summer's day?"


Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dim'd,
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature's changing course, untrim'd:
But thy eternal summer shall not fade
Nor lose possession of that fair thou ow'st,
Nor shall death brag thou wandr'st in his shade,
When in eternal lines to time thou grow'st,
So long as men can breathe or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee.

William Shakespeare (1564-1616)




Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.

Às vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.

Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:

Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.

Tradução: Bárbara Heliodora
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