Telma Miranda
Todos nós temos nossas manias. Tenho algumas. (Vamos lá, confesse!). Tenho várias. (Agora que confessei, não consigo me lembrar de mais de duas). Tenho algumas. Uma delas é guardar jornais para ler depois. Sempre acreditamos em um "depois" (idealizado, claro) como sendo mais propício: com mais tempo, mais chuva, mais tranquilidade. E sempre nos surpreendemos quando o idealizado não acontece. Condição humana.

Enfim, humanamente maníaca, guardava-os em um canto. E os jornais se acumularam, entulhando-me. Um dia de dezembro dou-me (a) conta do acontecido. Diante da "barata" (não literalmente, por favor, que não tenho sucos gástricos lispectorianos), paralisei-me. E agora? Jogo tudo fora e me orgulho de mim mesma por tal ato inesperado e heróico? Ou dou ainda uma "olhadinha" e guardo "apenas" o que ainda possa ter algum "interesse"?

Já adivinharam a resposta. Certamente não estaria aqui (des)escrevendo minha "vitória" e, sim, escrevendo para.... (Umberto Eco disse em uma entrevista no Caderno Mais, Folha de São Paulo em 11 de maio de 2008 que ele continua escrevendo porque.... ih.... esse se foi ...) dar continuidade e substância à minha mania. Mas, caríssimos, tenho que confessar (de novo?) que o prazer é enorme. E em dobro. Explico. Primeiro prazer é o de fazer acontecer "o" dia ideal. Sábado, chuvinha inesperada e temperatura amena mais inesperada ainda em dias de dezembro, ouvindo "Desert Rose" de Sting, mergulho minhas mãos entre os papéis-jornais. Abaixo o volume. Leio (achei! Umberto Eco!):

Não acredito na felicidade. Acredito apenas na inquietude. Ou seja, nunca estou feliz por completo - sempre preciso fazer outra coisa. Mas admito que na vida existem felicidades que duram 10 segundos ou meia hora. (...) Existem momentos de felicidade quando vc consegue expressar alguma coisa que o deixa contente. (...) Acredito ainda que a vida serve apenas para recordar nossa própria infância. Cada momento em que consigo me recordar bem de um instante de minha infância é um momento de felicidade, mas isso não quer dizer que os momentos de minha infância tenham sido momentos de felicidade. A infância e a adolescência são períodos muito tristes. (...) Algo de muito bonito que ocorre ao envelhecermos é que nos recordamos de um multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas. (...) Por isso, vou ao encontro de minha velhice com muito otimismo, porque, quanto mais envelheço, mais recordações tenho de minha infância.

E eis meu segundo grande momento de prazer: perceber a felicidade nos poucos segundos dessa leitura. E não importa se concordo ou não com o depoimento, se foi escrito em 2008 ou 2010, se foi de Umberto ou Borges. A felicidade, quase não a sinto mais, foi do acontecimento em si: a música, o vento entrando pela janela, o contato com o papel-jornal, a pausa, nova música ("Fragile" ainda com Sting), e o cheiro da dama-da-noite que insiste em tanto florir nessa manhã de fim de primavera.

Momentos memoráveis. E de repente o que era passado se torna presente e o presente se enche de um passado tão vivo. Daí que as lembranças evocadas pelos jornais antigos podem se tornar tão doces "presentes"...


PS:
1.Em entrevista publicada no caderno Prosa e Verso do Jornal O Globo - 31 de janeiro de 2009 - uma pianista chinesa afirma que há humor na música de Bach, principalmente nas "Variações Goldberg". Na décima e décima oitava. A conferir.
2. É possível que o título dessa postagem se torne um "marcador" e aí teremos outras "croniquinhas" acerca de "Jornais Antigos". Ou não.
3. Se houver a próxima, será exatamente sobre "Crônica:definições" - texto de Veríssimo publicado em.... sei lá, só sei que foi em uma revista de um jornal já extinto. Ui!
4. Me apaixonei (de novo) pelo Sting.
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1 Response
  1. Cara Telma:
    Transforme, sim, essa postagem na primeira de uma série. Excelente!


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