Telma Miranda



Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pode ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis.  E lá no fundo está a morte,  se não corremos e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

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Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo

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Sabe-se de um caixeiro-viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo, justo debaixo do relógio de pulso.  Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida mostrava os sinais de uns dentes muito finos.
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Julio Cortázar - "História de cronópios e famas"
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