Telma Miranda
Em tempos de Bienal é preciso uma reflexão. Hoje, no jornal "O Globo", lemos (relemos) a mesma ladainha: que as pessoas não têm o hábito de leitura, que o maior motivo é a falta de tempo e que o tal "hábito" se forma na infância. Primeira reflexão: "hábito" de leitura não se forma na infância. A primeira relação com a leitura é através do prazer e este só acontece quando encontramos o "primeiro" livro que realmente faça diferença. Este encontro pode acontecer a qualquer momento. Não adianta expor as crianças a livros (muitos deles subestimam qualquer sensibilidade), a exposições (idas obrigatórias pela escola), a peças de teatro "sofríveis", enfim, a toda uma série de atividades ditas culturais de que, dizem, precisamos participar. Ai daquele que ousa, diante do gato torto de Picasso, dizer que o pintor precisava de óculos. "Não, você não compreende. Isto é arte." E ponto. Voltando.
Quando temos nas mãos O tal livro, através do qual realizamos a grande experiência de leitura, aí sim, nos tornamos leitores. A aventura de ler torna-se uma paixão. Primeiro é a paixão, depois (claro) queremos mais, e a leitura pode assim se tornar um hábito. Este encontro pode acontecer a qualquer momento, em qualquer época: aos cinco anos, com o livro escolhido pelo avô, aos nove, na leitura silenciosa na escola, aos quinze com o livro emprestado pela melhor amiga, aos dezoito, com o livro-presente do namorado, aos trinta, quando compramos "A mulher de trinta anos" de Balzac. Segunda reflexão: a falta de tempo, citada como o grande motivo da falta de hábito de leitura, é o motivo, real sem dúvida, pelo qual deixamos de fazer tudo aquilo que nos traz prazer: não há tempo para conversas, para passeios, para ouvir música (sim, para ouvir música mesmo e não fazer uma trilha sonora para dirigir), enfim, o tempo não existe. E não existe mesmo. Por isso precisamos criá-lo. Terceira reflexão: temos que distinguir o leitor de um comprador de livros. A Bienal, por exemplo, que tem lá seus méritos, visa sobretudo o comprador de livros. Essa insistente estratégia junto ao público infantil, não nos enganemos, visa sobretudo à formação de um novo consumidor. O incômodo que causa em saber que há poucos leitores se transforma em um obstáculo às vendas e ao sucesso da indústria dos livros. Afinal, esta indústria não está preocupada com a leitura - e, com ela, que "as ideias voltem a ser perigosas" - e sim com seus lucros. É claro que existem histórias, como as relatadas no jornal, de pessoas que, ao terem contato com os livros - e a Bienal, como tantas outras iniciativas, é bem-vinda - possam se tornar leitores. Mas é preciso estar atento. Até porque há várias outras tentativas nesse sentido - como a de alguém que colocava livros usados em pontos de ônibus - que não tiveram nenhum apoio. Last but not least, o livro tem o poder de nos libertar e nos levar a um tempo sem ponteiros, um tempo de imersão, possibilitando uma inesquecível experiência. A leitura é ameaçadora, é transformadora. Nos tornamos leitores quando um livro se torna "um espelho coberto de areia sobre o qual depositamos, cheios de temor e de pudor, o que trazemos escrito dentro de nós."(José Castello). Só a verdadeira arte é capaz de nos transformar: é quando após a leitura de um livro, de um filme, de um quadro, nos sentimos outra pessoa e, paradoxalmente, nos sentimos, como nunca, tão intensa e verdadeiramente nós mesmos.
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1 Response
  1. Ah, minha amiga! Como soubeste descrever bem a arte de iniciar a leitura. Claro que é pela paixão. Lindo texto. Comovido, agradeço.
    bjs
    Carlos Eduardo


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