Telma Miranda

The Reader - Fragonard (1732/1806)


Era uma manhã de junho. Colégio Pedro II, em São Cristóvão. Com frio, sem nada pra fazer no recreio e irritada com alguma implicância feita por um dos colegas, entrei pela primeira vez na biblioteca: uma sala toda envidraçada que víamos do pátio e à qual não dávamos importância maior. Sozinha, tímida, sem saber direito o que fazer, caminhei por entre as estantes tentando lembrar um nome, qualquer, que me tirasse daquele desconforto. Foi então que li: Carlos Drummond de Andrade. Abri o livro:

COTA ZERO

STOP.
A vida parou
ou foi o automóvel?


Uma sensação... não sei dizer. Um soco? Uma surpresa?
Como assim? Era um poema? Uma pergunta? Haveria uma resposta?
O que faço agora? Fecho o livro e vou embora? Finjo que isso nunca existiu?
Volto para a minha vida? Qual vida, se agora....

Foi nessa manhã de junho que nasci.

*******

Em outras tardes de junho, a dor de me saber só, de possuir a lucidez dos que se instalam nas sombras, de me sentir diminuta na imensidão de mim mesma me impelia a crescer, talvez muito mais do que suportaria e menos do que (ainda não sabia) seria possível.


VERBO SER

Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor.
Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser?
Dói? É bom? É triste?

Ser; pronunciado tão depressa,
e cabe tantas coisas
Repito: Ser, Ser, Ser.
Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a?
Posso escolher?
Não dá para entender.
Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser.
Esquecer.



*******

E nas longas noites insones, quando o amor me comovia e lágrimas de saudade faziam brilhar as estrelas, a palavra poética mais uma vez dava sentido a tudo. A tudo aquilo que não tem sentido algum.


AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
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