Telma Miranda
Ainda "habitada" por Orlando (não é fácil partir para outra aventura) preciso compartilhar palavras. Não para me libertar, pois me quero presa a elas para sempre, mas porque talvez assim minha prisão seja ainda mais doce.



Lovers in the country. G. Coubert, 1844





Sobre o homem/mulher:

"Orlando transformara-se em mulher - não há que negar. Mas, em tudo o mais, continuava precisamente o que tinha sido. A mudança de sexo, embora alterando o seu futuro, nada alterava da sua identidade."

"Um pouco de carne, senhora? - perguntou. (...) Qual o êxtase maior? O da mulher ou o do homem? Não serão talvez o mesmo? Não, pensava, este é o mais delicioso (agradecendo ao capitão, mas recusando); recusar e vê-lo entristecer. Bem, aceitaria, se ele o desejava, um pedacinho pequenino, o menorzinho possível. Isto era a coisa mais deliciosa: ceder e vê-lo sorrir. Pois nada(...) é mais divino do que resistir e ceder, ceder e resistir."

"Recordava como tinha insistido, nos seus tempos de rapaz, em que as mulheres devem ser obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas. "Agora, tenho de pagar com o meu corpo por aquelas exigências", refletiu; "pois as mulheres não são ( a julgar pela minha própria curta experiência do sexo) obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas já por natureza. Só podem conseguir essas graças, sem as quais não lhes é dado desfrutar nenhuma das delícias da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Só o penteado", pensava, "me tomará uma hora, todas as manhãs; outra hora para mirar-me ao espelho; há o espartilho, o banho, os pós, há que trocar a seda pela renda e a renda pelo brocado; há que ser casta o ano inteiro."

"É melhor", pensou, "estar vestida de ignorância e pobreza, que são os obscuros ornamentos do sexo feminino; é melhor deixar a outros o governo e a disciplina do mundo; é melhor estar livre da ambição marcial, do amor ao poder e de todos os outros desejos varonis, desde que se possam fruir em toda a plenitude os mais sublimes arrebatamentos do espírito humano, que são", disse em voz alta, como era seu costume quando estava profundamente comovida, "contemplação, solidão, amor." "Graças a Deus que sou mulher", gritou.

"Orlando já sabia, pela sua própria experiência de homem, que os homens choram tão frequentemente e tão sem razão quanto as mulheres; começava, porém, a perceber que as mulheres se escandalizam quando os homens manifestam sua emoção diante delas, e estava escandalizada."

"Mesmo agora (...) estava em vias de fabricação. A mudança era incessante; a mudança talvez não cessasse nunca. (...) Como tinha mudado tão pouco em tantos anos. Fora um rapaz melancólico, enamorado da morte, como são os rapazes; depois amoroso e exuberante; (...)Apesar de todas essas mudanças - refletia - tinha ficado fundamentalmente a mesma. Afinal de contas, nada mudou."





Man writing a letter. Met Su, 1662

Sobre escrever:

"Estava descrevendo, como todos os poetas jovens sempre descrevem, a natureza, e, para determinar precisamente um tom de verde, olhou (e nisso mostrou mais audácia que muitos) para a própria coisa, que era um loureiro por baixo da janela. Depois disso, naturalmente, não pôde mais escrever. Uma coisa é o verde na natureza; outra coisa, na literatura. Entre a natureza e as letras parece haver uma natural antipatia; basta juntá-las para que se estraçalhem. O tom de verde que Orlando agora via estragou-lhe a rima, quebrou-lhe o metro."

"Orlando era um fidalgo afligido pelo amor à literatura. Muita gente de seu tempo, mais ainda, da sua hierarquia, se livrou desse mal, e tinha assim a liberdade de correr, cavalgar ou amar como bem lhe apetecesse. (...) Porque a doença de ler, uma vez tomando conta do organismo, enfraquece-o a ponto de torná-lo fácil presa desse outro flagelo que habita no tinteiro e supura na pena. O desgraçado dedica-se a escrever."

"Qualquer pessoa regularmente familiarizada com os rigores da composição dispensará pormenores; como escreveu e pareceu-lhe vil; corrigiu e rasgou; aparou; acrescentou; extasiou-se; desesperou-se; teve suas noites boas e suas manhãs ruins; apreendeu idéias e perdeu-as; viu diante de si o seu livro nítido, e desvaneceu-se; personificou seus heróis, enquanto comia; recitou suas falas, a caminhar; ora chorava; ora ria; vacilou entre este e aquele estilo; ora preferia o heróico e pomposo, em seguida, o singelo e simples; agora os vales de Tempe, depois os campos de Kent ou Cornwall; e não chegou a saber se era o mais divino dos gênios ou o maior louco do mundo."

"...Orlando retirava-se sozinho para o seu quarto. Lá, com a porta fechada, e certo da sua solidão, tirava um velho caderno, cosido com seda roubada ao costureiro de sua mãe e rotulado, com uma redonda letra de colegial, O Carvalho - poema. Nele escrevia até muito além da meia-noite. Mas como apagava tanto quanto escrevia, no fim do ano o total de versos costumava ser bastante menor do que no princípio, e era como se, à medida que o escrevesse, o poema fosse ficando inteiramente por escrever."

"A letra s - reflete - é a serpente no Éden do poeta. Mas o s não era nada, em sua opinião, comparado à terminação "ando". O particípio presente é o próprio demônio, pensava(...). Evitar tais tentações é o primeiro dever do poeta, concluía, pois, como o ouvido é a antecâmara da alma, a poesia pode arruinar e destruir com mais segurança do que a luxúria ou a pólvora. O ofício do poeta, continuava, é portanto o mais alto de todos. Suas palavras alcançam o que para os outros é inatingível."

"Pois, se é temerário entrar desarmado no antro do leão, se é temeráio navegar pelo Atlântico num barco a remo, temerário ficar num pé só no alto da Catedral de São Paulo, é ainda mais temerário ir para casa a sós com um poeta. O poeta é ao mesmo tempo um leão e o Atlântico. Um nos afoga e o outro nos rói. Se sobrevivemos aos dentes, sucumbimos nas ondas. Um homem que pode destruir ilusões é, ao mesmo temo, fera e dilúvio."

"A mais banal conversação é muitas vezes a mais poética, e a mais poética é precisamente a que se não pode anotar. Razão pela qual aqui deixamos um grande espaço em branco, o que servirá para indicar que o espaço está completamente repleto."



A Dance to the music of time. Nicolas Poussin, 1635



Sobre o tempo:

"Mas, desgraçadamente, o tempo, que faz florescerem e murcharem animais e vegetais com espantosa pontualidade, não tem sobre a mente humana um efeito tão simples. A mente humana atua com igual estranheza sobre o corpo do tempo. Uma hora, instalada no estranho elemento do espírito humano, pode ser distendida cinquenta ou cem vezes mais do que a sua medida no relógio; inversamente, uma hora pode ser representada no tempo mental por um segundo. Esse extraordinário desacordo entre o tempo do relógio e o tempo do espírito é menos conhecido do que devia ser, e merece mais profundas investigações. Mas o biógrafo, cuja tarefa, como já dissemos, tem de ser limitada, deve reduzir-se a declarar: quando um homem chega aos trinta anos, como Orlando, o tempo dedicado a pensar se torna estranhamente longo, e o tempo dedicado a agir estranhamente curto."

"A verdadeira extensão da vida de uma pessoa, diga o que disser o Dicionário Biográfico Nacional, é sempre matéria discutível. Porque é difícil esse registro do tempo: nada o desordena mais rapidamente que o contato com qualquer das artes."

"A memória faz a sua agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não sabemos o que vem em seguida, o que virá depois."
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1 Response
  1. Telma,
    Deliciosa estas capturas 'sobre o escrever' em Orlando. Tenho pesquisado sobre o que os escritores disseram e dizem sobre este ato da escrita. Vou retomar o livro.
    bjs
    Carlos Eduardo


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